Os Danos para o Ambiente e para os Guarani no Cerrado Durante a Ditadura Militar

Guarani Kaiowá people protesting, singing, and holding their maracá (an indigenous musical instrument).

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O Cerrado é o segundo maior bioma do Brasil e a mais biodiversa savana tropical do planeta, com dois milhões de quilômetros de um um sistema ecológico complexo que inclui áreas de campo, arbustos, pastagens nativas, florestas tropicais e outras vegetações naturais. Localizado no planalto central da América do Sul, as paisagens abrigam uma rica biodiversidade com quase 1000 espécies de pássaros e aproximadamente 300 mamíferos.[1] O grande destaque para a história do Cerrado é o fato de que sua rica biodiversidade é um dos mais antigos sistemas biogeográficos, de origem no período Cenozóico, por volta de 30 a 40 milhões de anos atrás.

Pastagem degradada no Cerrado brasileiro.
Brazilian Cerrado (Savanna)” por Christoph Diewald, licenciado sob  CC BY-NC-ND 2.0.
[Descrição da imagem: Pastagem degradada no Cerrado brasileiro com cupinzeiros.]

Os Guarani Kaiowá e os Guarani Nhandeva são dois povos indígenas tradicionalmente conectados à área conhecida hoje como o estado do Mato Grosso do Sul, no Cerrado, em uma terra chamada Serra Brava. Existem evidências arqueológicas apontando a ocupação dos Guarani no Mato Grosso do Sul desde a invasão portuguesa no território por volta de 1492, e a existência do povo Guarani no território nacional desde pelo menos 1000 d.C. De acordo com uma série de documentos e a história contada oralmente pelos mais velhos das aldeias, antes da ditadura militar no Brasil os Guarani Kaiowá e Nhandeva viviam em um pedaço de terra na Serra Brava, do qual atualmente eles reivindicam 2,3 mil hectares do total de 4 mil. Esta área costumava ser de difícil acesso e exigia que se atravessasse o rio Apa e o riacho Poção e nenhum dos dois tinha pontes de acesso. O solo era bem drenado com uma fertilidade média e o relevo era simples e com forte ondulação, com pedras na superfície. A área de floresta tinha 1,5 hectares e sua vegetação tinha árvores de peroba, aroeira e cedro em abundância.

Existem hoje oito aldeias em Serra Brava ocupadas pelos povos Guarani Kaiowá, Guarani Nhandeva e Terena. No entanto, existiam muito mais pessoas Guarani Kaiowá e Nhandeva morando lá no passado, antes que a interferência política e interesses econômicos de não indígenas acabassem por destruir uma parte significativa do território.

Os indígenas que se levantaram e guerrearam por seus territórios tradicionais enfrentaram violência extrema – o que aumentou desde o golpe militar em 1º de abril de 1964, quando generais militares brasileiros, fortemente apoiados pelos Estados Unidos, destituíram o então presidente João Goulart e tomaram o poder do Brasil. O resultado foi 21 anos de uma ditadura militar que matou, torturou e promoveu genocídios e ataques aos direitos trabalhistas do país. Ninguém podia votar, partidos políticos foram extintos, jornais foram censurados, trabalhadores foram demitidos por suas demandas trabalhistas ou presos, suspeitos de “comunismo” foram presos, torturados e mortos. Além disso, os danos da ditadura incluíram também a natureza e muitos povos indígenas. O Cerrado foi um dos biomas mais prejudicados durante a ditadura, que aumentou drasticamente a exploração da área, que ocorre desde a colonização portuguesa.

Em 1979, o governo ditatorial dividiu o antigo território do estado do Mato Grosso em dois: o Mato Grosso manteve o mesmo nome e a área do sul do estado foi separada e renomeada como Mato Grosso do Sul. O novo estado foi designado para servir ao agronegócio, sendo utilizado como uma área para testar, implementar e aprimorar a indústria agropecuária.[2]

Principais biomas do Brasil. Imagem retirada do Wikipedia Commons.
[Descrição da imagem: Um mapa mostrando os seis principais biomas do Brasil: Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa. O Cerrado está destacado em marrom.]
Mato Grosso do Sul e o Cerrado. Imagem retirada de: Wagner A. Fischer et al., “Human Transportation Network as Ecological Barrier for Wildlife on Brazilian Pantanal-Cerrado Corridors,” 24 de agosto de 2003, https://escholarship.org/uc/item/4f30z31b.
[Descrição da imagem: América do Sul e mapa brasileiro mostrando Mato Grosso do Sul e a área do Cerrado e Pantanal.]

O motivo para isso foi que, depois da Segunda Guerra Mundial, existia uma quantidade enorme de produtos químicos usados em armamentos e equipamentos de guerra – por exemplo, herbicidas à base de glifosato, DDT, e herbicidas 2,4-D. Aos olhos do governo ditatorial, esses materiais deveriam ser utilizados para algo produtivo e especialmente rentável. A maior parte deste material remanescente estava onde hoje se chama Mato Grosso do Sul, que divide os biomas Cerrado e Pantanal. Então o estado foi intencionalmente criado e selecionado para servir à essa necessidade do governo de fazer o material remanescente lucrativo, atendendo também ao que era chamado de “pacote da Revolução Verde”, que era uma demanda dos Estados Unidos.[3]

Os investimentos do governo foram totalmente direcionados para atender ao setor do agronegócio, motivo pelo qual os produtos químicos remanescentes foram transformados em agrotóxicos e outros aditivos sintéticos para impulsionar a produção massiva que estava prestes a começar. Esta decisão envolveu não só as forças produtivas mas também um alto investimento em pesquisa. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, ou Embrapa, foi criada em 1972 com a missão de ajudar o governo a testar e provar a eficiência de aditivos químicos e de sementes híbridas de alto rendimento no intuito de disseminar o modelo agrícola estadunidense no Brasil.

A “Revolução Verde” tinha a intenção de modernizar a política agrícola do governo para aderir ao chamado “milagre econômico” e supostamente proteger a população da “ameaça comunista”, uma vez que existia o medo de que a população pudesse se juntar à onda progressista que emergia na América Latina. O governo ditatorial optou por provar seu valor contribuindo para o “desenvolvimento” econômico e produtivo, e a Embrapa foi uma parte importante deste plano, começando sua pesquisa sobre o Cerrado no Mato Grosso do Sul em 1977. Desde então, a empresa tem contribuído para a exploração massiva da natureza na região. A mesma tem trabalhado em formas de manter o agronegócio a todo vapor, mesmo que isso signifique o assassinato e expulsão dos Guarani Kaiowá e Nhandeva de suas terras. Isso tudo para fomentar a monocultura e criação de gado em fazendas sobrepostas em terras indígenas.[4]

Um grande exemplo de como o agronegócio é uma séria ameaça para os povos indígenas na região é a história de Tupã’Y, ou Marçal de Souza, uma liderança Guarani Nhandeva que foi assassinada em sua casa em 1983 por um capanga chamado Rômulo Gamarra, a mando do fazendeiro Líbero Monteiro de Lima. Tupã’Y era uma referência não só para os Guarani Nhandeva, mas também um porta-voz designado pelo movimento indígena em diversas situações. Os fazendeiros invadiram terras indígenas para trabalhar com criação de gado e Tupã’Y lutou contra eles, organizando os indígenas para resistir à violência que vinha junto com a invasão da terra.

Tupã’Y era visto pelo governo ditatorial como “subversivo”, por questionar e apontar esquemas de corrupção vindos de forças criadas e administradas pela ditadura como o SPI, ou Serviço de Proteção ao Índio, e a FUNAI, ou Fundação Nacional do Índio. Além disso, ele denunciava publicamente a venda ilegal de madeira, mate e gado, e situações ainda piores como a venda de meninas indígenas para serem exploradas sexualmente. Ele denunciou a vida miserável que os Guarani Nhandeva e Kaiowá estavam vivendo, onde tinham péssimas condições de vida e grave falta de recursos devido à devastação do território pelo agronegócio, e toda a burocracia dessas organizações que sistematicamente evitava que eles conseguissem acessar os seus direitos básicos por meios oficiais. Tupã’Y foi perseguido e violentado por denunciar todos esses danos ao seu povo e seu território. Líbero Monteiro de Lima morreu impune tendo sido absolvido do processo onde era acusado de mandar matar Tupã’Y.

Tupã’Y, ou Marçal de Souza. Direitos autorais: Arquivo MST
[Descrição da imagem: Retrato de Tupã’Y, ou Marçal de Souza.]

Hoje, o Mato Grosso do Sul é um dos estados brasileiros mais afetados pela seca causada pelo desmatamento e queimadas. O estado registrou um clima desértico com umidade crítica e, em 2024, houve um aumento de 2.362% em queimadas, em comparação ao último ano, ameaçando a saúde do meio ambiente, dos animais e das pessoas. A contaminação do solo, dos rios e dos lençois freáticos são alarmantes, quando até mesmo a chuva está contaminada pelo uso massivo de agrotóxicos pelo agronegócio. Os agrotóxicos são também utilizados como arma de guerra quando são pulverizados de aviões e drones sobre comunidades indígenas. Tudo isso somado à maior ameaça na esfera federal, que é o Marco Temporal, um projeto de lei que estabelece que os povos indígenas só podem viver nos territórios se eles estivessem ocupando os mesmos em 5 de outubro de 1988, a data da promulgação da Constituição Brasileira. Este projeto de lei em andamento no Congresso é arbitrário uma vez que, nesta data, os indígenas tiveram que fugir dos ataques causados pela ditadura militar, como aconteceu com os Guarani Nhandeva e Kaiowá. Muitos deixaram seus territórios para não morrer, o que não invalida o fato de que eles estiveram ocupando estes territórios por séculos e que estes territórios são seus por direito – e de acordo com a própria Constituição.

A ditadura militar deixou um legado de exploração, dominação e alta produtividade a qualquer custo. Esses problemas persistem ainda hoje, quando fazendeiros ainda se sentem livres para invadir terras indígenas de forma impune, matando e perseguindo essas pessoas e destruindo a natureza para implantar monoculturas e gado por lucro. Os impactos da ditadura militar para o Cerrado e para os Guarani foram críticos e continuam ecoando ainda mais fortes hoje. A ditadura militar contribuiu fortemente para a devastação do bioma Cerrado e para a violência contra aqueles que protegem a natureza naquele território, aqueles que sempre estiveram lá e se mantiveram resistindo através dos séculos. Isso tudo demonstra uma emergência em resgatar a História para ajudar a conscientizar e, com sorte, evitar piores impactos para esta terra e para estes povos.


[1] Sandro Dutra e Silva, “Challenging the Environmental History of the Cerrado: Science, Biodiversity and Politics on the Brazilian Agricultural Frontier,” Historia Ambiental Latinoamericana y Caribeña (HALAC) Revista de La Solcha 10, no. 1 (5 May 2020): 82–116, 82-116.

[2] Vanessa Pereira Da Silva E Mello and Dominichi Miranda De Sá, “Science and the Green Revolution in the Brazilian Amazon: The Establishment of Embrapa during of the Civilian-Military Dictatorship and the Emergence of Environmental Movements (1972-1991),” Historia Ambiental Latinoamericana y Caribeña (HALAC) Revista de La Solcha 12, no. 2 (16 August 2022): 170–216.

[3] Mello and Miranda De Sá.

[4] Silva E Mello and Sá, “Science and the Green Revolution in the Brazilian Amazon.”

Imagem da capa por Victor Bravo, usada com permissão.

[*Descrição da imagem da capa: Povo Guarani Kaiowá protestando, cantando e segurando seu maracá (instrumento musical indígena). Todos eles estão usando acessórios tradicionais em suas cabeças e pescoços.]

Edited and reviewed by Lívia Regina Batista.